Identidade e comunicação corporal
Texto escrito por minha grande amiga Lú Brites, pesquisadora e educadora do movimento, bailarina, atriz, coreógrafa, coach corporal e professora de Yoga.
Será que sabemos o que expressamos quando chegamos a um ambiente? Que tipo de impressão passamos às pessoas cada vez que entramos em algum lugar? O que comunicamos quando nos colocamos diante de alguém? Será que é possível expressar verdadeiramente aquilo que somos através de nossos corpos?
Fala-se em 93% de comunicação não verbal, fala-se que é um pouco menos, um pouco mais, fala-se muito sobre o não falar. Buscando não cair em fórmulas ou generalizações, proponho uma breve reflexão sobre a relevância da identidade corporal de cada ser humano.
O desenvolvimento de nossa identidade corporal tem início na herança genética que recebemos dos nossos pais. A partir das características herdadas, respondemos e processamos os estímulos externos. A identidade corporal é a forma que assumimos a cada estágio da vida, é o curso feito pelos sistemas orgânicos, o resultado do diálogo entre o corpo e o mundo.
Nosso corpo é como um mapa que guarda as memórias de todas as nossas vivências: prazeres, traumas, afetos e desafetos. Guardamos as lembranças de tudo o que fazemos: exercícios físicos, relacionamentos, contato com a natureza ou com a vida urbana. Cada pequeno ou grande evento de nossas vidas é registrado e inscrito em nossos tecidos orgânicos. Os órgãos e as células registram os estímulos que chegam até nós, seja no sistema muscular, ósseo, cardiovascular, linfático ou sistema nervoso.
Incluir a ideia das memórias do corpo na busca para a melhor compreensão da identidade de um indivíduo é fundamental, pois, ocorre que:
A soma de todos os nossos sistemas orgânicos não alcança a expressão do que somos por inteiro.
A essa soma, deve-se incluir nosso sistema de crenças, valores e afetos mais profundos.
A identidade corporal de cada um de nós é diferente, somos seis bilhões de diferentes identidades corporais! É claro que a cultura e a geografia criam semelhanças entre as pessoas, mas não existem dois corpos idênticos.
Se analisarmos dois irmãos gêmeos univitelinos, a diferença de minutos entre a saída de um e do outro da barriga da mãe trará uma percepção diferente à memória já no nascimento. Com o passar dos meses, as experiências diferentes se acentuarão a cada detalhe, o sapato que um usa e o outro não, o tombo que um levou e o outro não…
Cada pequeno evento se aloja no corpo para toda a vida. Aqui, começamos a observar a repetição de gestos que criarão padrões na identidade. A repetição é a grande formadora de padrões, somos o resultado de nossas repetições diárias!
Frederick Mathias Alexander, um ator australiano, natural da Tasmânia, em 1930, perdeu a brilhante voz que tinha sem motivos aparentes. Como dependia da voz para viver e não encontrava quem o curasse, debruçou-se sobre a pesquisa que se tornaria a famosa Técnica de Alexander, estudo relacionando posturas às funções vocais e respiratórias que hoje beneficia pessoas do mundo inteiro. O que esse profissional descobriu foi que havia repetido certos movimentos tantas vezes em sua vida cotidiana, ao cumprimentar alguém, ao sentar, ao beber água etc., provocando assim, uma pressão sobre sua coluna cervical, criando uma tensão contínua na parte da frente da laringe (onde ficam as cordas vocais), o que, por fim, levou a um bloqueio em sua voz.
Gestos repetitivos como esse podem nascer por razões que, muitas vezes, fogem à nossa percepção. Vamos vivendo, trabalhando, digitando, sendo felizes ou sofrendo em nossas relações diárias e isso vai moldando nossos corpos, nossos órgãos, nossas células e também os gestos que realizamos com nossos corpos em diferentes situações. Nossa identidade corporal é constituída pela altura, pela massa muscular, cor da pele, elasticidade, mas também pela velocidade que nos movemos, a postura ereta ou curvada, se fazemos gestos largos ou curtos e também por funções muito íntimas, como a dinâmica de pulsação das nossas veias e artérias.
Todos nós temos padrões de uso de nossos corpos que se desenvolvem ao longo dos anos e, na maioria das vezes, não temos consciência, não controlamos e muito menos sabemos o tipo de impacto que geram nas pessoas que nos cercam.
O que acontece é que, muitas vezes, não ligamos, conscientemente, nem a forma dos nossos corpos, nem a maneira como nos mexemos aos nossos pensamentos e sentimentos. É comum o corpo físico estar no piloto automático enquanto trabalhamos. Imagine, por exemplo, alguém no ambiente familiar ou de trabalho, convivendo por anos com um mal estar pequeno, mas contínuo, respirando de forma inadequada sem perceber. Por conviver diariamente em um meio que a oprime, essa pessoa tem pensamentos negativos e repetitivos, que vão gerando sentimentos que provocam inconscientemente contrações em músculos, disfunções em tecidos orgânicos, irritações no sistema nervoso. Após alguns anos, uma dificuldade enorme em expandir o tórax poderá surgir aparentemente sem motivo. Uma figura curvada à frente, com o peito afundado, cujos pulmões estão quase sempre sem ar. Essa identidade foi criada diariamente, hora a hora. Esse corpo/mente moldou-se inconscientemente para transmitir a mensagem: estou infeliz nesse ambiente.
Sem saber sobre a construção da identidade, deixamos que nosso corpo seja afetado sem que possamos escolher quem queremos ser e como queremos agir com nossos corpos. Perdemos a saúde expressiva. Nossos gestos tornam-se altamente calculados, sem espontaneidade e, muitas vezes, sem produzir o efeito esperado. Tanto na forma do corpo, quanto no comportamento comunicado por ele. Essa desconexão pode e deve ser transformada. Podemos, através de treinamentos que unam corpo + mente + afetos, desenvolver a capacidade de não só conhecer quem somos diante do mundo, compreendendo melhor o que a combinação de nosso visual + pensamentos + sentimentos expressam, mas também desenvolver a capacidade de inventar quem seremos no mundo!
Se entendermos que somos como personagens com características físicas e psicológicas que propõem ações e afetos uns aos outros o tempo todo, podemos refletir melhor sobre essas questões. Quando um autor inicia uma trama, ele deve criar suas personagens, e para que um ator possa interpretar essa personagem, o autor irá descrever o tipo físico e os tipos de ações que a personagem realiza. A forma do corpo, o tipo de pensamentos, sentimentos e gestos serão os guias para um ator criar um ser humano diferente dele próprio. Em cena, o que é visível para o público será seu corpo, não enxergamos sentimentos nem pensamentos, mas vemos pensamentos e sentimentos expressos em formas e ações.
Aí está a equação final: se pretendemos realizar ao máximo nossos potenciais corporais e vitais, e se desejamos construir uma identidade corporal satisfatória e vibrante, o caminho é compreender o corpo integrado à mente e ao coração. Sem esquecer que somos seres sociais.
Proponho que sejamos “atores” e “autores” de nossa identidade corporal. Proponho que cada pessoa possa acreditar na sua força criativa e possa inventar a própria vida através da invenção do próprio corpo!