Fragilidade é poder
Somos condicionados a pensar em nossa vulnerabilidade como um defeito. Você já pensou que a sua fragilidade é uma vantagem evolutiva?
Fomos condicionados a pensar em nossa vulnerabilidade e fragilidade como um defeito, como algo que devemos evitar. Quando a psicologia estuda a vulnerabilidade através de questionários íntimos e criteriosos, 99% das pessoas reconhecem que são vulneráveis aos acontecimentos de carga afetiva e emocional que as atingem e afetam. Afinal, o ser humano é um animal extremamente emocional, sendo assim, ser frágil e vulnerável é uma característica essencial a nós. Ser frágil significa dizer que somos humanos, que temos coração e que somos afetados pelo mundo ao nosso redor.
A psicologia, efetivamente, preocupa-se com as pessoas que não reconhecem e escondem a todo custo, até de si mesmas, a sua própria vulnerabilidade. Esses casos, de difícil tratamento, podem representar uma forma de patologia em que o indivíduo busca a todo custo transformar o seu coração em um bloco de pedra, pensando, assim, proteger-se do mundo e de seu semelhante. Esse processo faz o indivíduo se fechar em si mesmo e ter uma enorme dificuldade em se relacionar afetivamente com os outros, sob diversos aspectos.
Desde muito cedo, nós somos ensinados a não sentir, a anestesiar os nossos sentimentos e as nossas fragilidades, que não são bem vistas socialmente. Isso ocorre frequentemente, como quando alguns pais ensinam o seu filho a engolir o choro e a se calar, para não atrapalhar as normas sociais.
Da mesma forma, quando as crianças estão muito eufóricas e alegres, são reprimidas e, muitas vezes, punidas através de castigos ou formas extremamente agressivas de se conter algo que é natural e instintivo nessa fase da vida. Os pais tendem a negar os sentimentos legítimos vividos pelos pequenos e, assim, vão matando a sua autenticidade.
Esse processo vai desligando a nossa conexão natural com as nossas emoções, com o nosso coração. Outro dia, vi um casal gritando e repreendendo fisicamente uma criança pequena de apenas três anos, apenas porque ela estava falando alto. É obvio que uma criança dessa idade ainda não tem capacidade de entender e assimilar tais conceitos. Nós devemos permitir que as crianças sejam apenas crianças, afinal, essa é uma fase muito rica, que passa muito rápido.
Existem diversas fases vividas por uma criança no decorrer do seu desenvolvimento orgânico e natural. O ambiente social civiliza e educa a criança o tempo todo, portanto, esse processo já vai existir em excesso na vida dos pequenos. O ideal é conversar e interagir com a criança em um nível de entendimento que acompanhe a sua evolução intelectual e psicológica em cada fase do desenvolvimento, e não exigir que ela entenda, aos três anos de idade, coisas que não fazem o menor sentido para ela. Infantis e ingênuas não são as crianças, somos nós por tratá-las como pequenos adultos.
Efetivamente, ensinamos os nossos filhos a não sentir, já os preparando para o cruel mundo adulto. Nós os ensinamos muito a pensar, a serem extremamente racionais, a partir de um modelo de escola cheio de conteúdos que nos estimulam a olharmos somente para fora de nós mesmos. A escola, infelizmente, não nos ensina o mais importante: olharmos para dentro de nós mesmos.
“Não é nossa função endurecer nossas crianças para que elas possam encarar um mundo cruel e sem coração. Nossa função é criar crianças que farão do mundo um lugar um pouco menos cruel e com mais coração.” (L. R. Knost)
Quanto mais pensamos, menos sentimos.
Como vamos escutar o nosso coração, se fomos doutrinados a vida inteira, por nossos pais, pela escola e pela sociedade, a não dar ouvidos a ele?
Ultimamente, um discurso muito comum em diversos livros e textos é o de que devemos escutar o nosso coração. O que não se explica direito é como, efetivamente, fazer isso. Basicamente, escutar o seu coração significa estar conectado e atento aos seus sentimentos, a ser menos razão (mente) e ser mais emoção (coração). Quanto mais esvazio minha mente, mais preencho meu coração.
Por esse motivo, todas as formas de meditação surgem como uma maneira bastante eficiente de acalmar a nossa mente, a fonte primordial dos nossos desequilíbrios e angústias. Quando acalmamos a mente, abrimos espaço para os nossos sentimentos e emoções se manifestarem. Dessa forma, saímos da prisão das nossas idealizações e condicionamentos mentais e nos conectamos com a nossa essência, ao que é verdadeiro em nós.
Os maiores sofrimentos e angústias que enfrentamos em nossas vidas nascem dessa dificuldade em lidarmos com os nossos próprios sentimentos. Apenas falarmos sobre nossas angústias e dificuldades emocionais já significaria evitarmos uma enorme quantidade de doenças e processos somáticos que afetam os nossos corpos. Todos os nossos sentimentos são legítimos, naturais e instintivos.
Veja a seguir um texto do psiquiatra Paulo Gaudêncio sobre esse tema, extraído de seu livro “Minhas razões, tuas razões – A origem do desamar”:
“O conflito faz parte da vida. E é sonho, apenas sonho, pensar em ser feliz quando os nossos conflitos acabarem. Todo mundo tem esse sonho. Mas os conflitos não acabam nunca. (…)
Esse é o ser humano: um conflito inevitável. Quando comecei a trabalhar, achava que o ser humano adulto era uma pirâmide sólida e inabalável. Hoje vejo o ser humano no extremo oposto. É um móbile frágil. Soprou, ele balança. Mas há um ponto de equilíbrio ao qual ele retorna. Porém, se o ego idealizado é muito elevado, o superego começa a condenar impulsos, passando, então, a tirar peças do móbile: tira a agressividade, tira o sexo, tira o ciúme. E o homem se desequilibra. Fica rígido, inflexível, imóvel. E torto. (…)
Para reequilibrar o móbile, é preciso requalificar os impulsos que sentimos. Requalificar significa repensar, avaliar de novo, dar uma nova qualidade àquilo que parecia estabelecido. (…)
Requalificar, portanto, é duvidar do que vovó dizia e avaliar novamente. A gente aprende, o bom senso explica, mamãe conta, a escola afirma, a lei reforça, a religião mostra que existem dois tipos de instinto: os bons e os maus. Amor, por exemplo, é considerado um instinto bom. Agressividade é um instinto mau. Os instintos bons são aqueles que a gente deve pendurar no móbile, fazendo força para que sejam os únicos. Os maus são os que a gente deve retirar do móbile, reprimir.
Reprimir é deixar a fera dentro da jaula. Se tiro a fera da jaula e a domo, ela ainda é fera, mas está sob o meu controle. Quando reprimo um impulso, eu não consinto que ele atue. Vivo como se ele não existisse. Em outras palavras, passo a não sentir o que sinto. Boto a fera dentro da jaula. Ela, porém, não para de agir. A fera informa meu comportamento, mas estou surdo para ela. E o comportamento fica descontrolado, porque atuo sem saber quem é o informante.
Além de condenarmos os instintos considerados maus, nós também costumamos trocar os nomes de alguns deles para disfarçar. É outro jeito de pôr a fera para dentro. Trabalhei uma vez com um grupo de freiras. Uma delas era muito maltratada no convento, a madre superior massacrava a coitada. E, quando ela me contou isso numa sessão, perguntei se ela não sentia um ódio muito grande por causa daqueles maus-tratos. A freira me olhou muito surpresa e se calou. Numa outra sessão, ela voltou a relatar os maus-tratos e injustiças e eu perguntei: ‘A senhora sente raiva?’ Novamente, um olhar de surpresa. Como eu poderia pensar que uma pessoa tão boa, tão santa sentisse coisas tão ruins? Após algum tempo, houve novo relato de uma injustiça absolutamente revoltante. Dessa vez, perguntei: ‘E a senhora se sente magoada por causa disso?’ Aí ela aceitou: ‘Isso doutor. Eu tenho uma mágoa tão grande… Meu coração é um pote de mágoa.’ Então, eu entendi que mágoa é ódio de freira. Mágoa pode, ódio ou raiva, não. Quando vejo alguém muito magoado, penso: quanto ódio ele está sentindo! É um ódio implodido, reprimido, esquecido no time dos impulsos que a moral estabeleceu como maus.
Essa dicotomia entre instintos bons e ruins é simplesmente cultural. Na verdade, todo instinto é bom. Ele pode, no entanto, dar um resultado bom ou mau. Exemplo: o amor é um instinto bom, posso fazer coisas majestosas com o amor, mas posso também destruir por amor. O número de pessoas que foram destruídas por uma superproteção que tinha como base o amor é muito grande. Posso castrar uma pessoa, principalmente um filho, de duas formas: ‘Não faça. Eu não deixo.’ E ele não aprende. Se castra. Ou, de outra forma, permeada pelo afeto: ‘Não precisa fazer, meu bem. Eu faço por você.’ Ele também não aprende. E castra até a agressividade, pois ninguém pode ter raiva de alguém que é tão bom. (…)
Como o medo, a agressividade é um impulso desqualificado na nossa sociedade. Mas a agressividade é tão boa quanto o afeto. É ela que mobiliza o animal paralisado pelo medo. Se estou paralisado, preciso reagir, atuar agressivamente.”
(Fonte: “Minhas razões, tuas razões – A origem do desamar” de Paulo Gaudêncio. Editora Gaia, 2014)
“O homem é um animal que sente e pensa. Fala o que pensa. Age de acordo com o que sente. Quando não se conhece, não pensa o que sente, não sente o que pensa.” (Paulo Gaudêncio)
A fragilidade representa uma enorme fonte de poder em relação a criar vínculos afetivos profundos e verdadeiros com os nossos semelhantes. Quando expomos a nossa fragilidade, somos autênticos e verdadeiros conosco e com o outro, e isso cria amor, empatia, perdão e solidariedade. Nesse aspecto, a fragilidade pode ser entendida como uma vantagem evolutiva, uma vez que os indivíduos mais maduros e bem resolvidos emocionalmente criam vínculos afetivos mais duradouros e permanentes.
A figura do “cowboy” representa alguém triste, solitário, cujo coração foi endurecido ao extremo para se proteger do “mundo cão” lá fora. Alguém que não se mostra, que esconde brutalmente os seus sentimentos. Pois bem, para a imensa maioria das pessoas, o ambiente de trabalho criado atualmente pelas empresas simula o “velho oeste”, literalmente.
As empresas ainda não perceberam o óbvio, mas para um time funcionar bem tem de haver colaboração e jogo em equipe. O sistema competitivo coletivo é diferente do sistema competitivo individual. Quando as empresas investem em um estímulo à competição individual, e não ao time como um todo, o ambiente de trabalho se transforma em um inferno. Um quer passar por cima do outro e as responsabilidades são jogadas sempre nas costas dos mais fracos. Para um time atingir o máximo da sua performance, cada indivíduo deve ser valorizado ao extremo, deve ser elogiado e reforçado em suas características e talentos. Só assim ele pode florescer e cultivar um sentimento genuíno de motivação e pertencimento.
Qual a maior expectativa que temos em relação ao trabalho? Segundo a psicologia social, a imensa maioria das pessoas buscam felicidade e realização em suas profissões. Qual ambiente elas efetivamente encontram nas empresas doentes? O cenário é mais ou menos assim: imagine-se em uma cena de filme do velho oeste. Você chega em seu escritório vestido a caráter e armado até os dentes. Logo começam os tiroteios. Todos vieram bem armados e o fogo cruzado é intenso e pesado.
Passando por um desfiladeiro, alguns pistoleiros lhe armaram uma emboscada, então você é capturado e amordaçado. Preso em uma masmorra fétida e nojenta, você passa fome e fica sem água a manhã inteira. Um amigo pistoleiro vem salvá-lo e vocês fogem.
Mais tarde, o xerife vem ao seu encalço e o coloca para lavar o chão do banheiro da delegacia. Ele o humilha, xinga e deixa claro que você é um incompetente. Você foge dali na primeira oportunidade, mas logo os índios apaches aparecem para pedir o seu escalpo.
Ao fim do dia, você está completamente acabado, as cicatrizes e os esfolamentos se espalham por todo o seu corpo. Você está em frangalhos e, finalmente, deita-se em sua cama para o merecido repouso. Mas, nem bem você se deita e pistoleiros selvagens (representando as metas e preocupações que inundam a sua cabeça) chutam a sua porta, invadem a sua casa e não o deixam mais dormir a noite inteira. No dia seguinte, a mesma cena se repete.
Que tal? Alguém aí se reconheceu e se identificou com esse “cowboy corporativo”?
Tenho diversos amigos que mandaram à m… esse modelo caduco de empresa doente. Hoje eles vivem felizes e plenos de sentido e pertencimento em empresas que se preocupam realmente com o ser humano, e não apenas servem cegamente a um deus chamado dinheiro.
E aí, qual vai ser a sua escolha? No fim, quem sustenta esse sistema maluco e doente de metas insanas e competição descontrolada no ambiente de trabalho é você e todas as pessoas que se sujeitam a isso.
“Bendito seja quem souber dirigir-se a esse homem que se deixou endurecer, de forma a atingi-lo no pequeno núcleo macio de sua sensibilidade, e por aí despertá-lo, tirá-lo da apatia, essa grotesca forma de autodestruição a que, por desencanto ou medo, se sujeita (…).” (Plínio Marcos)