CHAVE 15

Conheça o personal dealer.

Confira abaixo alguns trechos do livro “Nu e Vestido – Dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca”, organizado por Mirian Goldenberg. Para facilitar o entendimento das ideias que quero apresentar, fiz uma seleção de algumas informações que considero essenciais encontradas em diferentes partes desse livro, sem com isso alterar o seu sentido original. O texto a seguir é uma compilação desses trechos.

Na França do século 19, só os homens podiam realizar proezas físicas ou metamorfoses musculares, e isso lhes conferia lealdade, virilidade, uma força inteiramente masculina. Naquela época, uma mulher forte e musculosa seria considerada um monstro, talvez até exposta num circo. Hoje, no Brasil, são justamente as mulheres “fortes” que ganham as manchetes dos grandes jornais, e o que parece anormal é não cuidar do corpo. Muitos professores das academias seguem o modelo dos Estados Unidos e reintroduzem esse sistema clientelista no Brasil. Assim, não é raro ver nos parques ou nas praias do Rio essas duplas de desportistas formadas por uma mulher seguida de perto por seu personal trainer e sacrificando-se a rigorosos rituais de exercícios sob o olhar atento desse artesão da forma: “Meu personal é super-rigoroso, quando estou fazendo os exercícios tenho de me concentrar, não posso abrir a boca!”, me revela uma aluna (Sabrina, 29 anos, gerente de bar, Ipanema, Rio).

Às vezes é o próprio personal trainer quem fornece aos alunos “receitas de boa forma” preparadas à base de anabolizantes, suplementos alimentares e outras drogas corporais, tornando-se assim uma espécie de personal dealer. A dopagem é muitas vezes visível nos corpos definidos dos marombeiros que, por causa de seu físico, se tornaram personal trainers e foram rapidamente integrados ao quadro de funcionários da academia.

O corpo aparece como objeto sobre o qual atua o poder da mente. Mero instrumento que deve ser aprimorado para que o espírito atinja seus objetivos. Este aprimoramento deve contar com o imprescindível auxílio da ciência, e é neste ponto que as drogas apolíneas entram em cena:

“(…) quando alguém faz exercícios, deve concentrar a força da mente sobre o corpo. Sobre aquele músculo que ela quer desenvolver. O corpo obedece… faz aquilo que a mente manda. (…), você pode construir o corpo que quer, que deseja; cada vez mais, a ciência vai desenvolvendo instrumentos que fazem as pessoas superarem os limites genéticos. Os anabolizantes servem para isso, né?! Agora tem o GH17, que faz o cara crescer absurdamente e, pelo que parece, não tem efeito colateral… só não fica bonito e forte quem não quer ou quem não tem dinheiro.” (João, 29 anos, professor)

Veja outro exemplo:

“O corpo pode ser fabricado, produzido, se o cara tem disciplina, força de vontade. É claro, tem um preço… sem bomba não cresce, tem que tomar bomba. Você vê, todo mundo está tomando anabolizante, agora, essas atrizes… os atletas, então, nem se fala. Então, tem que tomar, sem bomba não cresce. Já ouviu aquela frase dos americanos: ‘No pain, no gain’, ‘sem dor não há ganho’. É isso aí.” (Carlos, 26 anos, empresário)

Também é comum a representação do corpo como máquina:

“Sem óleo do bom, nenhuma máquina funciona legal, não é? Pois é, com o corpo é a mesma coisa. Se o cara não aplicar um óleo, uma bomba, de vez em quando, ele não fica legal, não consegue malhar bem, não. Tem que aplicar pelo menos uma ‘Deca’, de vez em quando, pra dar força no motor.” (Afonso, 47 anos, fiscal)

Já foi dito que um novo tipo de consumo de drogas vem surgindo desde a década de 1980, perfazendo um processo de uso radicado em um universo simbólico inverso ao das drogas dionisíacas. O uso de tais substâncias, proibidas no Brasil, chamadas pelos marombeiros de “bombas”, as quais denomino drogas apolíneas, coloca seus usuários, a princípio, na categoria de desviantes (Becker, 1971). Apesar disso, o processo de utilização de tais drogas se realiza em contextos e visões de mundo diferentes daqueles comumente associados aos usuários tradicionais de tóxicos. Os indivíduos que “tomam bombas”, como eles mesmos dizem, têm, em geral, o desejo de integração à cultura dominante. A utilização dessas drogas proibidas para a construção de um corpo musculoso não se faz com o objetivo de subversão sistêmica, mas como tentativa de se harmonizar com os padrões estéticos vigentes na cultura dominante, sintonia que possibilite aquisição de status, não apenas no interior do grupo, mas na sociedade, em geral. O marombeiro, então, é um desviante peculiar. Ele desvia para se integrar, como, de certa forma, atesta o discurso de um informante fisiculturista:

“(…) os marombeiros de verdade, os fisiculturistas, não vão contra a ordem das coisas, contra a natureza. A sua natureza. Eles apenas a fortalecem, a ajudam a aumentar seu potencial para se tornarem seres maiores e mais fortes. Vencedores. E isso é natural… É isso que a natureza quer… Os marombeiros não se sentem envergonhados com seu corpo masculino, têm orgulho dele, isso é normal! Por isso, querem manter e aperfeiçoar esse corpo… então, é a maior hipocrisia esse negócio de proibir anabolizante. A maconha, a cocaína, a heroína, vá lá, elas acabam com o cara… A gente só quer é manter a saúde. E, se o cara souber usar, ele não vai ter problema nenhum. Eu uso bomba há 12 anos e nunca tive nada, porque eu me cuido, sei usar… Ilegal, então, deveria ser o implante de silicone, essas porcarias que as patricinhas e dondocas estão fazendo… Também o cara que corta, que opera o pinto para virar mulher, isso sim é ilegal, porque é antinatural.” (Bruno, 29 anos, atleta e segurança)

Para que alguém possa começar a utilizar “bombas”, deve também iniciar sua participação em um grupo que “se encontra organizado ao redor de uma série de valores e atividades” (Becker, 1971: 65).

Para obter sucesso neste campo, em que a aparência é o capital principal, o indivíduo necessita articular uma espécie de calvinismo fisiológico (Fussel, 1991), que se concretiza em um treinamento intensivo, que acaba por levar, com frequência, à destruição metódica do corpo. Destruição que está inevitavelmente associada ao uso intermitente dos esteroides anabolizantes e às lesões por esforço repetitivo.

Entre os marombeiros, há um rito de passagem ou, como prefere Bourdieu (1996a), um rito de instituição, no qual o uso da droga surge como item crucial na transição do indivíduo de um status para outro no campo da musculação. O relato a seguir, um entre muitos, é um indício do que pode significar o uso de anabolizantes:

“A primeira vez que tomei bomba foi o Paulão que me arranjou e me aplicou também… Eu tinha muito medo, mas sabia que, mais cedo ou mais tarde, teria que tomar se quisesse chegar aonde eu queria. Naquele dia, passei a me sentir outra pessoa… Vi que começava a malhar de verdade, que participava de uma espécie de… Acho que… Segredo… Fora isso, o efeito foi muito bom. Na mesma semana, já estava pegando 15 quilos a mais no legpress, na semana seguinte, todo mundo estava dizendo: ‘Aí, hein, está com o maior pernão, está sarada’. Diante disso, só dá para se sentir bem, né?! Você se sente forte, gostosa e poderosa [risos].” (Márcia, 29 anos, economista e empresária)

As drogas apolíneas representam item fundamental nesse processo de construção da estética diferencial e masculinizante. Todos os usuários sabem que seu uso pode causar diversos tipos de câncer, impotência sexual e até mesmo levar à morte, e isso representa papel importante nos ritos de instituição que compõem a construção de identidade entre os marombeiros. É a utilização do sofrimento infligido ao corpo que faz com que os ritos sejam o que são, pois os indivíduos aderem de maneira tanto mais decidida a uma instituição quanto mais severos e dolorosos tiverem sido os ritos iniciáticos a que se submeteram (Bourdieu,1996a; Turner,1974).  Esses ritos vão demarcando as posições entre dominados e dominantes, entre aqueles que são “fortes, saudáveis e bonitos” e os que são “fracos, doentios e feios”.

Esse processo também indica a radicalização do individualismo presente nas culturas ocidentais, levando os seres humanos a considerarem não apenas o corpo de outros seres humanos, mas o seu próprio corpo como objeto. O corpo alheio (assim como o do próprio indivíduo), e tudo aquilo que representa é reduzido a uma espécie de mercadoria, objeto descartável, passível de ser facilmente consumido e substituído por outro.

(Fonte: “Nu e Vestido – Dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca”, organizado por Mirian Goldenberg. Editora Record, 2002.)