A resultante do treinamento.
Entrevista com Dr. Maciel Murari Fernandes.
Na minha opinião, o Dr. Maciel é um dos maiores especialistas em biomecânica, cinesiologia e estudo da dor e do movimento no Brasil (veja o seu currículo no site do Centro de Estudo da Dor e do Movimento – CEDM). Ele é um fisioterapeuta com uma visão integral do corpo, já que estudou e se formou em diferentes técnicas, como RPG, Pilates, GDS e outras técnicas somáticas. A seguir, a entrevista que fiz com ele.
Nuno: Como você analisa o treinamento com foco na performance? O treinamento para performance é saudável?
Dr. Maciel: Podemos dar um outro significado para a palavra performance. Vamos imaginar, o que é performance para você? Eu posso até usar o termo performance, mas se eu fosse seu treinador teria de entender todas as suas condições de movimento, as suas necessidades viscerais. Pode ser que você tenha um diabetes, precise emagrecer ou precise de massa magra. Então, eu vou tentar entender essas necessidades, mas nunca esquecendo o que vai conduzi-lo até elas, e, nesse ponto, surge a importância do aparelho locomotor. Porque não tem como eu controlar todos esses aspectos de que você necessita, como emagrecer, ganhar massa magra, controlar o diabetes, o colesterol, com você deitado. Você precisa de movimento, um movimento de qualidade, um movimento com nível mínimo de moderação e estímulo para chegar lá. Então, performance, para mim, em relação a você, é atingir todas essas condições de que você precisa, mas sem prejudicar o seu aparelho locomotor. É isso que é performance. Não é aquele índice em que eu levo você para um nível cada vez maior com você mesmo. Se você atinge o ponto A, agora esse não é mais o bom, agora o bom é o outro ponto. Atingiu o outro nível na corrida e, agora, é um outro nível mais rigoroso que passa a ser a meta, e isso nunca acaba.
Então, performance não deveria ser vista dessa forma. Porque, se eu estou querendo olhar para você daqui a 20 ou 40 anos, preciso olhar para você de outra maneira. Como vou considerar o sistema, já que ele é muito diferente? Eu tenho um músculo que se regenera completamente e, do outro lado, uma cartilagem que não tem capacidade de regeneração adequada. Como eu organizo isso para que você consiga manter o treinamento por 20 ou 40 anos? Como eu considero isso no treinamento? São coisas tão diferentes a serem consideradas: o seu diabetes, o seu colesterol, o seu excesso de peso. São tantas variáveis, e por que a gente não considera dessa forma? Muitos treinadores costumam jogar tudo no mesmo saco, entende?
Por exemplo, o treinador pensa: vou colocar seu diabetes nessa panela porque você precisa perder açúcar. Você tem colesterol alto? Vou colocar nessa panela também. Você tem que ganhar massa magra? Também vou colocar na mesma panela. E, como eu uso tudo isso? Coloco alguns poucos ingredientes, como intensidade e volume, e isso aqui vai resolver tudo. Mas você vai ter um grande problema lá na frente, porque se esqueceu de olhar para as suas cartilagens. Elas estão na direção oposta dessa loucura que você vai fazer com o seu corpo. Todo este treinamento para performance só vai acentuar esse desgaste, e isso lá na frente pode se transformar em uma lesão, em uma artrose. O professor pode colocar tudo o que ele quiser nessa panelinha, só que tem um problema sério que não está sendo considerado: a morfologia e a cartilagem. Ele ignora tudo isso completamente e começa a dar treinos intensos e os períodos vão aumentando, aumentando. O aluno começa a ter menos açúcar, menos colesterol, e isso é bom. Mas o professor se esquece de que o aluno precisa fazer isso durante 60 anos ou mais. Daí, depois de quatro ou cinco anos, o aluno começa a apresentar uma dor aqui, uma dor ali, uma degeneração aqui, outra ali. Como ele vai manter esse aluno saudável se o que ele podia gastar em 60 anos ele gastou em cinco? Então, o que realmente é performance? Nesse caso, ele aumentou o nível de performance? Aumentou, mas o que é performance para esse aluno depois que acontece isso? De que lhe serviu, realmente?
Nuno: O esporte deveria ser algo divertido e saudável, e isso se perdeu. O esporte virou essa loucura de você se matar para bater um recorde, uma marca. Você acha que o esporte e, principalmente, o treinamento foi muito para esse lado?
Dr. Maciel: Esporte, hoje em dia, é negócio. Com isso, o que acontece é que o sucesso no treinamento está associado ao resultado que você tem; o resultado será melhor se você estiver fazendo mais rápido algum desafio ou meta propostos ou, então, se melhorou o seu condicionamento físico.
Nuno: Isso é uma deformação do entendimento da saúde no treinamento? Como você vê isso?
Dr. Maciel: Sem dúvida. Eu trabalho com dor. Quando um indivíduo que pratica atividade física há muitos anos vem para mim com dor e com limitação, ou seja, ele não consegue caminhar um quarteirão, porque ele vai ter dor e depois dessa pequena caminhada ele precisa sentar, sendo que, anteriormente, ele corria maratonas e fazia uma série de coisas, e, agora, na meia idade, ele está vivendo essa condição precária, isso é muito triste. O que ele entende é: “Poxa, se eu treinei era para não ter nada, era para ser saudável. Se eu treinei era para estar cada vez melhor.” Na visão do aluno, o treinamento é um estado ótimo, como haviam lhe prometido. Ele deveria estar no melhor do seu potencial físico. Como tudo é mensurado a partir de uma condição ligada a performance, ele pensa: “Como eu fui, praticamente, um atleta amador, eu não deveria ter nada e, agora, não estou entendendo porque tenho isso aqui no joelho, na coluna. Eu quero entender o que está acontecendo comigo.”
Quando o aluno vem para mim, ele quer resgatar tudo que ele já fez, com muito orgulho. Mas, quando ele faz o resgate do seu passado, do seu histórico de atividades vigorosas e, inevitavelmente, compara com o seu estado atual, ele já vai ficando deprimido. Porque ele não se vê sem fazer o que ele fazia, ele não se vê longe das corridas, das provas de longa distância, de uma maratona. Ele está numa condição tão ligada a performance como a única razão para as coisas acontecerem, ou seja, ele só treina se for com um foco em performance, que essa é a única motivação dele. Não é a saúde. Ao longo do tempo, esse conceito já foi tão repetido a ele, já foi tão incorporado, que ele não consegue enxergar mais a atividade física como algo ligado à saúde, ligado à moderação, ligado ao equilíbrio, ligado a outros fatores que não a performance. Acho que tem uma distorção muito grande, porque se fosse performance, mesmo que ele fizesse esse tempo todo, ele teria que estar muito bem. Performance é um estado ótimo do indivíduo.
Nuno: É isso que é vendido para ele. O que está sendo vendido não é o entendimento correto do treinamento físico?
Dr. Maciel: O treinador está falando só do ótimo, de algo ideal; o aluno não pode ter chegado ao máximo da sua performance e a resultante ser uma prótese de joelho, um quadril que não funciona mais, uma hérnia na coluna que necessite de cirurgia. A resultante não pode ser essa.