CHAVE 32

Como correr descalço por longas distâncias e não se lesionar?

700 quilos de impacto

Se vocês soubessem o quanto sofro diariamente ao presenciar todo tipo de treinamento radical e agressivo, entenderiam minha motivação em escrever este livro.

Acompanhando e convivendo com meu pai, aprendi com esse grande mestre o que é um treinamento cuidadoso e artesanal, que realmente leva em conta a graduação e a individualidade de cada aluno. Tudo isso, somado aos cursos de biomecânicas e cinesiologia que fiz com o grande professor Maciel, além de tantos outros estudos, fizeram-me ter um olhar diferente em relação à prevenção e ao treinamento.

Uma das formas de treinamento que mais me revolta é quando vejo alguém acima do peso praticando corrida. Quando essa pessoa está correndo à força, estimulada por um treinador ou correndo ao lado do seu personal, a minha revolta se expande.

Outro dia, vi um personal correndo com um aluno que estava uns 50 quilos acima do peso. O aluno estava roxo, quase cuspindo o coração para fora da boca e suava “em bicas”. O personal só sabia gritar frases motivacionais clichês de treinamento, como “não para!”, “vamos lá!”, “só mais um pouco!”, “sem moleza, vamos!”. A minha vontade foi interromper o treino e perguntar para o personal: “Você foi contratado para cuidar da saúde desse aluno ou para acabar com a saúde do sujeito? A sua intenção é provocar um ataque cardíaco em seu aluno ou destruir as articulações do joelho dele para sempre? Qual dessas duas opções você escolhe?”

Eu fico me perguntando em que ponto esses treinadores se esqueceram de tudo o que aprenderam na faculdade e aderiram a essas formas de treinamento radicais. Talvez eles tenham lido alguma pesquisa científica pela internet, glorificando o treinamento de alta intensidade na perda de peso e, assim, alinharam-se ao lado ruim da ciência. Provavelmente, leram também uma matéria de capa, em uma das maiores revistas do país, com o título “A revolução dos músculos”, dando conta de uma pesquisa sobre as vantagens do treinamento de alta intensidade, o que deu início à moda do uso dessa técnica de treinamento no Brasil como forma de acelerar a perda de peso.

O que falta a esses professores é entender, de uma vez por todas, que o treinamento de alta intensidade não se aplica a quem está acima do peso.

Todo professor aprendeu na faculdade que, na maior parte da população, a zona de otimização da queima de gordura, a zona de “fatburn”, ocorre 20 batimentos cardíacos abaixo do primeiro limiar anaeróbico, ou seja, em um nível de batimento cardíaco que varia entre 100 e 130 bpm. Essa zona de treinamento permite ao nosso corpo metabolizar a gordura através da presença maciça de oxigênio na corrente sanguínea.

Isso quer dizer que, se o foco do aluno é a perda de peso, ele não deve correr por dois motivos, principalmente. Primeiro porque nós metabolizamos essa gordura de reserva em uma zona extremamente aeróbia, como eu disse anteriormente. Ou seja, ele não precisa correr, porque é praticamente impossível a quem está acima do peso manter essa zona ideal de fatburn durante uma corrida. A tendência, devido à sobrecarga, é que a pulsação fique bem mais alta, entre 140 e 190 bpm.

Por que correr com uma pulsação mais alta inibe o processo de queima de gordura? Uma vez que seu corpo atinge esse limiar de pulsação mais alto, ele se adapta e para de usar a gordura como fonte de energia, isto é, torna-se muito eficiente quando se trata de correr e utilizar as fontes de energia já disponíveis. Em outras palavras, em uma corrida anaeróbia, depois de uma leve perda de peso inicial, o seu corpo se recalibra e, em vez de usar suas reservas de gordura como fonte de energia para continuar a corrida, ele simplesmente não se utiliza dessa reserva armazenada. Em relação à perda de gordura, isso é conhecido como “hitting a brick wall”, ou seja, você pode continuar correndo durante um longo período, mas o seu corpo não utilizará mais as suas reservas de gordura.

O segundo motivo, seguindo a máxima do meu pai que diz “nós treinamos hoje para poder treinar amanhã”, deve-se ao fato da corrida ser uma atividade de alto impacto. Assim, caso essa pessoa tenha uma lesão articular grave ou um desgaste na cartilagem – o que pode ocorrer, fatalmente, mais dia menos dia, devido ao esforço repetitivo e à sobrecarga – ela terá conquistado o maior obstáculo de todos na perda de peso: a incapacidade futura de se exercitar.

Sugiro que todos os professores de educação física passem por uma experiência bem didática, que, aliás, deveria ser adotada por todas as faculdades. Só assim eles entenderão na própria pele esse conceito. Sugiro que esse professor coloque uma caneleira de cinco quilos em cada perna, como também, uma mochila com dez quilos nas costas e outra, com mais dez quilos, virada para frente, simulando uma barriga. Pronto! Agora, com 30 quilos acima do peso (o que nem é tanto assim, pois basta pensar que seria equivalente a um homem de 1,78 m, que deveria pesar por volta de 70 quilos, mas está com 100), pode tentar correr com essa sobrecarga por 50 metros. Aí sim, ele entenderá finalmente qual a dificuldade e o impacto articular vividos por quem tem sobrepeso.

O impacto sobre a articulação do joelho é de sete a oito vezes o peso corporal durante uma corrida a sete quilômetros por hora. Faça essa simples conta de multiplicação em uma pessoa que pesa 100 quilos e você entenderá qual será esse impacto.

O joelho é a parte que mais sofre com o impacto, pois ele tem uma capacidade muito limitada de ajustes. É uma estrutura muito travada, só permite pequenos ajustes para cada lado. Já o quadril, o tornozelo e os pés têm uma enorme capacidade de ajuste, absorção e dissipação das cargas que chegam, sendo assim a maior parte do impacto sobra mesmo para o joelho.

Existe uma regra geral básica que deveria nortear o treinamento aeróbio, independentemente da capacidade aeróbia e do preparo físico de cada aluno: ninguém com mais de dez quilos acima do seu peso ideal deveria correr, sob hipótese alguma, pois no longo prazo os riscos articulares não compensam. É sempre bom lembrar que a caminhada é bem mais eficiente do que a corrida quando o foco do aluno é a perda de peso, na imensa maioria dos casos.

O ideal é começar com caminhadas de 30 minutos, caso você esteja inativo, e ir aumentando a duração aos poucos, a cada dois meses pelo menos, até chegar a caminhadas longas de uma hora ou mais. Não existe uma receita de bolo que sirva para todos. Você deve ter cuidado e escuta para saber a hora de aumentar a duração e a intensidade, sempre com muita atenção para não exagerar e colocar tudo a perder.

O segredo de todo treinamento bem-sucedido é a adaptação articular e muscular. Você deve dar o tempo necessário ao seu corpo para ele se adaptar a cada mudança na intensidade que realiza. Treinando dessa forma, o céu é o limite. Afinal, como diz meu pai: “Nós vamos devagar porque temos pressa.”

Faça repouso do treino, pelo menos de uma a duas vezes na semana. Caso você esteja inativo há muitos anos, faça caminhada de três a quatro vezes na semana, nos primeiros seis meses. Aliás, para quem corre, considero quatro vezes na semana uma meta ideal de treinamento aeróbico. Assim, você foge do exagero e não consome as articulações.

O ideal mesmo seria fazer um revezamento das atividades aeróbicas realizadas, alternando a corrida com treinos de bike, natação, patinação, skate, remo, stand up paddle, entre outros. Dessa forma, você foge definitivamente das lesões por esforço repetitivo, o maior inimigo do corredor. Os maiores ortopedistas e fisioterapeutas defendem essa variação da atividade cardiovascular, mas, infelizmente, não existe uma integração do conhecimento corporal no treinamento físico. Sendo assim, esse preceito tão básico e tão obvio não chega a grande maioria da população.

Um corredor pode atingir, em pouco tempo, o número de um milhão de passos dados, repetidos sempre no mesmo padrão e forma de movimento, estimulando e exigindo os mesmos pontos de sua articulação e cartilagem. Isso, no longo prazo, se traduz em um enorme risco de lesões. Assim como na alimentação, em que devemos variar ao máximo os alimentos, variar o tipo de estímulo seria o ideal em toda atividade cardiovascular, justamente devido a esse grande número de repetições realizadas.

O vício da corrida pode ser mesmo um vício muito perigoso. Conheço um corredor de aproximadamente 40 anos que treina diariamente no Parque Villa Lobos. Ele me contou que já fez três cirurgias no joelho e, no entanto, está lá, correndo novamente contra o relógio e fazendo provas longas de 21 km ou 42 km com frequência, como se nada tivesse acontecido. Isso não me parece muito inteligente. Trata-se de um filme clichê para os ortopedistas: “Crônica de uma artrose anunciada”.

Alguns estudos realizados no Brasil recentemente levantam questões preocupantes, mostrando que 71,2% dos corredores já sofreram com lesões e dores decorrentes do esporte e 53,1% já tiveram problemas mais graves. As mais relatadas são as lesões no joelho, como tendinite e lesões de menisco, e as lesões no pé, como tendinite de Aquiles e fascite plantar. Em seguida, aparecem as lesões na perna, como canelite e fratura por estresse, e as lesões na coluna, como lombalgia e hérnia de disco. Ao sentirem dor, 46% dos esportistas consultados colocam apenas gelo no local e seguem treinando. Outros 42% param de correr temporariamente, porém não fazem tratamento e retomam o treinamento em seguida.

O gelo é um ótimo analgésico, mas usá-lo indiscriminadamente não é recomendável, já que a dor mostra o início de um processo que pode levar a lesões mais graves.

O número de corredores sem orientação de um especialista é de 77%. E 30,6% recorrem à automedicação indiscriminada, consumindo anti-inflamatórios sem receita médica, o que é bastante perigoso, pois seu uso crônico pode levar a problemas gastrintestinais e cardiovasculares.

Não interromper o treinamento e não cuidar do problema equivale a acentuá-lo, levando essa lesão a um grau mais grave, em que pode não haver retorno. A dor é uma aliada. Nunca treine com dor, sob qualquer circunstância. O ideal mesmo, para quem almeja uma vida longa na corrida, principalmente para quem começa a correr bem cedo, já aos 18 ou 20 anos de idade, e quer correr até os 80 anos ou mais, seria correr com uma pulsação baixa e com baixo impacto na pisada. Se a preocupação e o foco do treinamento fossem realmente a sua saúde, essa seria a melhor estratégia, sem dúvida alguma. Sem contar o fato de que treinar com moderação favorece imensamente o nosso sistema imunológico. Pergunte a algum corredor que treina em exagero, seja na distância ou na intensidade, se ele sabe o que é passar três ou quatro anos sem ter uma simples gripe ou uma queda do sistema imunológico.

Leia um trecho do livro do meu pai sobre este tema:

“Quando falo em trabalho com uma frequência cardíaca sempre baixa, posso ser criticado pelos especialistas em esporte ou em condicionamento físico, mas em princípio não trabalho somente com condicionamento físico e sim com saúde. Uma pessoa pode ter excelente condicionamento físico e não ter saúde. Em meu método, o condicionamento vem por acréscimo.

A ideia é ir empurrando os próprios limites sem nunca ultrapassá-los. O movimento, nessa proposta, é sempre agradável. Visa-se a saúde. Lembre-se: caminhar não faz mal, correr não faz mal, desde que a atividade venha no momento em que o coração, a circulação sanguínea e os pulmões estejam abastecendo todas as células com tanta eficiência que o trabalho não exija esforço.

Então, correr não é uma coisa que se ponha na cabeça de uma hora para outra. Um dia você se vê correndo, não porque queira correr, mas porque aconteceu. Vai correr, mas não vai se cansar, porque aquela corrida não é um esforço violento para o corpo graças à circunstância de que o organismo evoluiu, respondeu, reagiu, cresceu e se desenvolveu – então está pronto. Nessa altura você pode correr que não lhe fará mal nenhum.”

(Fonte: “A semente da vitória” de Nuno Cobra, Editora Senac São Paulo, 2007.)

Complementando a ideia final do texto acima: desde que essa corrida não seja excessiva e seja feita com baixo impacto e baixa frequência cardíaca, é claro!

Nós deveríamos seguir a sabedoria dos Masai, uma tribo africana que se desloca correndo por longas distâncias, da forma mais leve e lenta possíveis.

Um ser primitivo, em certas circunstâncias, pode ser mais inteligente e naturalmente mais sábio, pois segue a sua intuição. Como já diz a sabedoria popular: “É devagar que se vai longe.”

Observação: os Masai correm descalços! Mesmo assim, não se lesionam.