O prazer aperfeiçoa a felicidade?
Aqui está um recorte livre e pessoal que fiz do capítulo “Segundo encontro” do livro “Felicidade” de Eduardo Gianetti. Fiz uma seleção de trechos que completam a ideia que expus no capítulo “Ganhar na Loteria” do meu livro, sem descaracterizar o texto original e muito menos alterar o seu sentido.
A busca do prazer e a aversão à dor não detêm o controle exclusivo das ações que conduzem a felicidade, mas são guias indispensáveis na realização desse fim. A natureza não dá ponto sem nó. Uma espécie biológica que sofresse dores lancinantes ao saciar os seus apetites por alimento, sexo e sono estaria com os dias contados. A mensagem que a língua cifrada da dor e do prazer físico nos transmite é inequívoca: a natureza nos quer vivos e dispostos a procriar. O que os materialistas libertinos do século 18 intuíam é hoje uma evidência científica: o orgasmo feminino eleva as chances de fecundação, no ato sexual. Como ensinava o velho e bom Aristóteles, “o prazer aperfeiçoa a atividade”.
O que torna as pessoas mais felizes? A pergunta pode soar arrogante e pretensiosa, mas a resposta não precisa ser. O primeiro passo é constatar que o bem-estar humano abarca dois componentes básicos. Existe uma dimensão objetiva, passível de ser publicamente apurada, observada e medida de fora, e que se reflete nas condições de vida registradas por indicadores numéricos de nutrição, saúde, moradia, uso do tempo, renda per capita, desigualdade, criminalidade, e assim por diante; e há uma dimensão subjetiva, que é a experiência interna do indivíduo, ou seja, tudo aquilo que passa em sua mente de forma espontânea, enquanto ele vai vivendo e agindo ao decorrer dos dias, e que volta e meia ocupa a sua atenção consciente. A felicidade é algo que sucede na confluência das duas dimensões.
Há várias décadas, os cientistas sociais deram início a investigações em larga escala sobre a satisfação dos indivíduos com as suas vidas e a sociedade. Um dos achados mais robustos desta pesquisa foi que as correlações entre os juízos globais sobre a qualidade de vida e as condições objetivas são, frequentemente, muito fracas. Por exemplo: décadas de forte crescimento econômico nos Estados Unidos, Europa e Japão, na segunda metade do século 20, muito pouco ou nada alteraram as proporções de indivíduos felizes ou infelizes na população dos respectivos países. O crescimento compra a felicidade em países extremamente pobres, mas, a partir do momento em que a nação atinge determinado nível de renda (cerca de US$ 10 mil anuais per capita), acréscimos adicionais de renda não mais se traduzem em ganhos de bem-estar subjetivo; por exemplo, entre 1975 e 1995 a renda média por habitante nos Estados Unidos aumentou 43% em termos reais, ao passo que a felicidade média dos norte-americanos não saiu do lugar.
Porém, o objetivo do crescimento econômico permanece absolutamente prioritário para a maior parte da população. Vá explicar num vilarejo perdido lá da África Subsaariana que a riqueza não traz felicidade e que, no fundo, “a pobreza resulta do aumento dos desejos do homem e não das reduções das suas posses”.
A partir de certo ponto, ou seja, quando as necessidades biológicas primárias foram satisfeitas, as pessoas passam a prestar mais atenção e a se preocupar com outras coisas. O que importa já não é tanto a renda absoluta, mas a renda relativa – a situação em que elas estão em relação aos demais.
Resolvida, portanto, a questão dos bens primários, começam a entrar em cena os chamados “bens posicionais” – a pletora infinita dos tênis de grife dessa vida, ou seja, os bens cujo valor reside precisamente no fato de que eles são socialmente escassos, visto que a grande maioria não dispõe de renda para adquiri-los.
O poeta latino Petrônio, retratando os ricaços da Roma antiga, põe na boca de um deles: “Só me interessam as posses que despertam no populacho a inveja de mim por possuí-las.” O ardil repugna, mas tem sua lógica – o populacho é cúmplice. Se os pobres simplesmente rissem e escarnecessem da riqueza e ostentação dos ricos, o circo desabaria.
O ponto crítico, contudo, onde a roda da felicidade pega, é que, ao contrário da renda absoluta, a renda relativa jamais poderá melhorar para todos ao mesmo tempo. É como a primeira classe num avião: o número de assentos é fixo; se novos passageiros vierem a ocupá-los, os atuais terão que se acomodar mais atrás. Na competição por status, preeminência e prestígio – “por um lugar de honra na mente dos nossos semelhantes” – o sucesso de alguns é, por definição, o fracasso da maioria. Note o seguinte: se nós admitirmos, como as evidências indicam e o senso comum reforça, que a chance de ser feliz é maior para quem está no topo da pirâmide de renda, então, a ação racional do indivíduo será escolher o meio adequado para chegar lá. Ele tentará ingressar no clube dos mais ricos e fará isso independente do que os demais estiverem fazendo. Se os outros desistirem, melhor para ele, pois a competição será menor. É por isso que eu digo que, se a mudança de valores não vier por bem, ela virá por mal. Se os bilhões de “excluídos” do planeta insistirem em conceber a busca da felicidade como uma interminável acumulação de bens de consumo, então, o meio ambiente e a biosfera não suportarão o desaforo. O limite irá se impor de fora para dentro.
O mais grotesco nisso tudo é que a corrida armamentista do consumo, ainda por cima, não leva ao que promete, há um equívoco monstruoso nessa ideia tão cara aos economistas, de que a autorrealização humana se resolve na esfera do consumo, ou seja, por meio da satisfação de apetites que se multiplicam como coelhos, e da gratificação indiscriminada dos sentidos. A falência do modelo Iluminista-Faustino é dupla: ele não é generalizável em escala global e ele também falha nos seus próprios termos, ou seja, ele nos ilude ao acenar com uma promessa de felicidade que jamais se cumpre. A corrida rumo a lugar algum em que estamos metidos é muito mais que o efeito conjunto das ilusões, vaidades e autoenganos que nos movem como indivíduos. Ela é um impulso coletivamente suicida.
Talvez o benefício advindo do maior consumo esteja sendo apenas o suficiente para compensar “a maldição dos ganhadores” – o custo de tantas fantasias e ilusões perdidas. “Quando os deuses querem nos punir eles atendem as nossas preces.” Conseguir boa parte daquilo que desejamos pode nos deixar com menos do que tínhamos, no início. Os habitantes dos países ricos satisfazem objetivamente uma infinidade de preferências de consumo, mas a felicidade não responde à altura. Aos olhos dos que acompanham de fora a farra, imaginando e invejando à distância a vida de luxo e fartura que poderiam estar levando se lá estivessem, a incapacidade de traduzir tanta riqueza em felicidade deve parecer uma situação de inferno dos tolos.
(Fonte: “Felicidade” de Eduardo Gianetti. Companhia das Letras, 2002.)
Eu acrescentaria um último detalhe para finalizar o texto do Giannetti: porém, caso lá estivessem, as mesmas pessoas que invejam tanto a riqueza alheia, provavelmente, iriam sentir e vivenciar as mesmas ambiguidades, frustrações e angústias vividas pelos mais ricos.