CHAVE 36

No final, tudo se encaixa! Nada como um complemento transdisciplinar para ampliar nosso conhecimento.

Veja abaixo mais um trecho da entrevista que fiz com Dr. Maciel Murari Fernandes. Nessa parte, o tema é “Performance a qualquer custo”.

Nuno: Como você avalia a cultura do corpo que estimula um modelo de treinamento ligado à performance?

Dr. Maciel: O que eu vejo é que existe um volume maior de pessoas que estão indo por esse caminho. Na verdade, a performance é desculpa, o mais correto seria dizer que é performance para a estética. O destino é a estética. A verdade é que o aluno pensa: “Eu quero ficar forte, preciso emagrecer, quero mais músculos e preciso disso para ontem”. Como o fitness é um mercado, ele está todo calcado na estética. Imagine que isso é imensurável, ou seja, não tem como você quantificar a porcentagem de pessoas que se sentem seduzidas a estarem numa condição melhor de se aceitarem e serem aceitas. Esse é um ponto que o mercado consegue conquistar muito fácil, ele consegue atingir as pessoas com isso. Mas o mercado disfarça. A estética não é estética, e sim saúde, como eles dizem para maquiar. Mas a proposta, de verdade, é só estética mesmo, é performance a qualquer custo.

Nuno: Mas o discurso é de que estão vendendo saúde. Você acha que é um modelo saudável? 

Dr. Maciel: Não, ele não é saudável. A saúde é bem diferente disso. Quando o aluno se coloca para um trabalho de acompanhamento, ele tem que ter uma participação muito forte no conhecimento do próprio corpo, das suas condições reais e dos seus objetivos, se esses são coerentes ou não com aquilo que pode realizar. Mas isso não é feito. Na verdade, o aluno chega para um personal, na maioria das vezes, e o que provavelmente ele deve falar é o seguinte: “Preciso emagrecer para ontem, preciso ganhar músculo, quero correr a maratona daqui a um ano etc.” E aí, o personal aceita toda essa loucura, vai lá, monta uma planilha e começa a fazer o trabalho.

Nuno: Essa planilha só vai aumentando, e a cada mês fica mais radical. Você acha saudável buscar resultados rápidos em poucos meses?

Dr. Maciel: A eficiência do personal é mensurada pelo menor tempo em que o aluno conseguir o resultado. Isso não é inteligente. O funcionamento do nosso corpo é completamente oposto a isso. Basta você imaginar que precisa de dois anos para renovar as suas fáscias, ou seja, o colágeno que você tem no corpo, os tecidos e fáscias que promovem passagem de tensão. Só para ter uma ideia, de maneira grosseira, se são dois anos para essa renovação, ter mais ou menos colágeno em algumas regiões do seu corpo depende da qualidade do movimento que você realiza. Imagine que eu comece a fazer um trabalho com você hoje, e que você tenha uma condição de movimentação que acentua o uso de determinados pontos do seu corpo. Nesses pontos, a fáscia tem mais colágeno, e aí eu começo a reorganizar os seus movimentos. À medida que eu passo a não dar mais estímulos a determinados pontos, que são os pontos de muita tensão, o tecido passa a não ter mais necessidade de estar nessa condição de tensão que se encontra hoje. Mas isso vai levar um tempo, só assim posso atingir um padrão de movimento adequado a você. Um padrão real de estrutura só pode ser atingido em dois anos, pensando em relação ao tecido biológico. Mas o personal está pondo você para fazer maratona em um ano. Com que padrão de movimento real ele está trabalhando? O aluno está com o padrão que ele próprio encontrou, sem nenhuma análise mais cuidadosa. Ou seja, o personal coloca mais massa magra em você, mas não consegue mexer no padrão do seu movimento. Ele simplesmente não consegue mexer naquilo que deveria para você estar mais protegido, caso ele realmente se preocupasse em fazer um trabalho mais cuidadoso. Mas, em um ano, não dá tempo. 

Nuno: É irreal um aluno sair do ponto zero e querer correr uma meia maratona no prazo de um ano? Isso vai trazer bons resultados?

Dr. Maciel: O que é o resultado? Que resultado é esse que os alunos buscam? Essa é a pergunta.

Nuno: Um resultado ligado apenas a performance?

Dr. Maciel: Que resultado é esse que eu quero?  Será que o aluno sabe qual o resultado que ele pode ter a partir de um alto impacto articular na corrida, sem que haja uma devida adaptação? 

Nuno: Não.

Dr. Maciel: Ele não sabe disso. O aluno não sabe que o resultado que ele vai ter, muito provavelmente, será uma lesão. O treinador deveria dizer isso para ele: “Você quer em quanto tempo mesmo? Em um ano? Então, deixa-me explicar como o corpo humano funciona, como o treinamento funciona.” Mas se isso não acontece no momento em que deveria acontecer, então, na verdade, não existe uma parceria. O que o professor acabou de fazer é assinar embaixo, é como dar ao aluno uma carta dizendo: “O seu desejo será realizado e o seu desejo é coerente, tanto que eu estou assinando aqui. Eu vou fazer você chegar lá, daqui a um ano.” É isso o que acontece, e, no entanto, deveria ser exatamente o oposto. Caramba, você está fazendo uma consulta com o professor, você está dizendo para ele: “Olha, eu quero isso, quero muito isso”. O treinador teria que lhe explicar como isso funciona, e não ser seu parceiro nessa loucura.

Nuno: Eu gosto muito desse discurso que você fala em aula, é perfeito! É realmente isso que acontece quando o aluno procura um treinamento, na maioria dos casos. O que você quiser, eles vão dar. “Eu quero ficar forte, eu quero ficar muito grande em seis meses, é possível?”, eles perguntam.  “É possível sim, vamos lá, beleza, vamos juntos”, responde o treinador. Mas ele não explica para o aluno as contraindicações desse exagero.

Dr. Maciel: Hoje, quando o aluno se machuca ao ponto de degenerar uma cartilagem gravemente, de ficar realmente incapaz, depois de participar por cinco anos de uma assessoria, ele nem relaciona que isso foi devido ao treinamento que fez. É mais louco ainda, porque ele recebeu tanta informação de que tinha de continuar, tinha de buscar performance, que a ficha não cai. Ele não percebe que fez uma coisa que não deveria fazer. Pelo contrário, quer voltar para o treinamento. Quer que você tire a dor dele o mais rápido possível, para poder voltar a correr. Ele quer retomar as formas de treinamento ligadas apenas à competição e à performance, que representam um extremo risco à saúde das nossas articulações e cartilagens. Para ele, isso não é uma loucura, porque quando chega lá, todos os treinadores incentivam: “Vamos em frente! Supere o seu limite!”, gritam constantemente. “Vai! Puxa! Você tem que aumentar o ritmo”, os amigos que estão treinando com ele também incentivam. “Vamos lá, você tem que se superar! A sua mente é quem manda, força!” Aquilo para ele é algo normal, é o certo. Errado foi ele. Na sua cabeça, foi ele quem não reagiu bem ao treinamento, foi ele quem não resistiu.

Nuno: Ele nem relaciona uma coisa com a outra, não é?

Dr. Maciel: Isso daí é muito complicado. A ficha dele não cai, ele quer voltar a correr. Daí, tem que passar por três ou quatro médicos que vão falar e repetir o mesmo diagnóstico: você não vai conseguir mais correr porque a sua articulação já era. Então, o cara faz gambiarra, vai tomando anti-inflamatório, vai fazer 20 sessões de cortisona. Eles vão dando um jeito, só que isso não tem como dar certo. Não dá para ir longe demais nesse sistema de gambiarra.

Nuno: Aliás, quanto mais adiar, pior. Se ele tivesse parado antes, poderia não ter levado a lesão a um grau extremo, não é? Se na primeira lesão, ele olhasse para isso e entendesse de onde veio essa lesão, não voltaria para a corrida. Mas o que acontece é que ele fica indo e voltando. Fica entre o treino e a recuperação do estrago causado pela competição e, mais tarde, tratado pela fisioterapia.

Dr. Maciel: O que acontece é que, em muitos casos, ele não recebeu uma assessoria mais completa e aprofundada, que leve em conta a preservação e a saúde do aparelho locomotor, o que deveria ser uma das principais preocupações de um treinador. Na minha opinião, é completamente equivocado você fazer planilha de treinamento só mencionando frequência cardíaca. Isso não é parâmetro. Não pode ser o único parâmetro para dar a um aluno ao longo de dez ou 20 anos de treinamento. Quando ocorrem as lesões, o discurso é o seguinte: “Vai para este ortopedista aqui. Está com dor na coluna? Vai para esse médico que é da coluna.” Isso, pra mim, não é uma forma correta de assessoria.

Nuno: Por quê? Explique melhor isso. A assessoria teria que ser mais abrangente?

Dr. Maciel: Você procura um profissional e ele não assume nenhuma responsabilidade? Só com a sua frequência cardíaca? Então é assim: a frequência está melhorando, você está emagrecendo, porém, quando você se quebra, a assessoria vai apenas lhe indicar um médico, e o médico não fala nada sobre esse modelo de treinamento representar um extremo risco à sua saúde. Daí, você recebe injeções, ultrassom ou faz uma cirurgia, volta e consegue correr por mais algum tempo, e o professor vai levando isso dessa forma. Essa relação não é saudável, isso não é correto!