A coluna não é uma dobradiça
Mais um trecho, o último, da entrevista que fiz com o Dr. Maciel Murari Fernandes, fisioterapeuta, professor e um dos maiores especialistas em biomecânica, cinesiologia e estudo da dor e do movimento no Brasil.
Nuno: Muitos treinadores propõem um excesso de treinamento do músculo abdominal pensando em proteger a coluna. Existe isso?
Dr. Maciel: Não, isso não é possível. Essa condição direta de você ligar o treinamento para a musculatura abdominal com a proteção da coluna é completamente absurda, não é real.
Nuno: Estamos dando a correta atenção às nossas articulações e cartilagens? Explique melhor essa questão.
Dr. Maciel: Eu tenho os músculos abdominais que vão promover, durante os exercícios, movimentos para aumentar a força desses mesmos músculos. No momento em que eu promova a flexão, inclinação lateral e rotação da coluna, eu vou contra uma condição cartilaginosa da coluna que é o disco intervertebral. Ele é uma fibrocartilagem que resiste a esses movimentos, ao contrário de uma articulação do quadril, por exemplo, uma sinovial, que é uma bola encaixe e permite o movimento côncavo e convexo. Na coluna, eu tenho o disco intervertebral que faz um movimento de resistência no momento em que eu faço as flexões laterais, frontais e rotações. Dessa forma, vou aumentando as tensões sobre o disco intervertebral e aumentando o desgaste desses discos.
Nuno: Então, o efeito é contrário, não é? Fazer muito abdominal é negativo para a coluna?
Dr. Maciel: Os exercícios abdominais que fazem esses movimentos, que promovem movimentos com flexão, extensão, rotação e inclinação lateral, são diretamente contra a saúde da coluna vertebral. Os fortalecimentos dos músculos abdominais deveriam ser feitos de forma proprioceptiva, nunca dobrando a própria coluna.
Nuno: Então, temos uma questão complicada, porque as academias estimulam diversas formas de exercícios abdominais feitos através desses movimentos. Em aula, isso é o mais comum. Estimulam que o aluno faça séries de 50, 100 abdominais por dia. Tem gente que chega a fazer 300 abdominais por dia. Uma pessoa que se orgulha de fazer 300 abdominais por dia, o que está acontecendo com ela? Estou falando das formas clássicas de abdominal, que torcem ou levantam o tronco para frente.
Dr. Maciel: Ela está acabando com os discos da coluna vertebral, ou seja, com aquilo que protege a articulação, o alinhamento e a estabilidade da vértebra, e atua contra a hérnia de disco. Esses discos são responsáveis por todas as condições ligadas à preservação do nervo. Esse nervo sai entre os corpos vertebrais, e para ele sair, tem que ter espaço.
Nuno: Com o tempo, essa pessoa vai ter um problema grave na coluna? Uma hérnia de disco devido ao nervo pinçado?
Dr. Maciel: Apesar de ter músculos abdominais fortes.
Nuno: Ou seja, ela vai ter o abdômen lindo, superforte, mas pode ter uma dor absurda e uma incapacidade de se locomover, pois isso vai afetar os membros inferiores, não vai? Explique melhor como isso funciona.
Dr. Maciel: Todos os nervos que saem da região lombar vão em direção à região pélvica e aos membros inferiores. Eles trazem sensibilidade, força e controle motor para esses músculos pélvicos e membros inferiores. Então, se você tem uma hérnia que vai comprimir os nervos nessa região, você vai ter sequelas de movimento e sensibilidade dos músculos que são correspondentes a esses nervos. Ou seja, você vai perder equilíbrio, propriocepção, movimentação e força nas pernas, por conta dessa compressão severa que pode acontecer na região.
Nuno: A preparação física tradicional defende que você fortaleça muito o “core”. É o que eu vejo nas aulas nos parques; são os caras fazendo muito abdominal. Nas academias, as aulas chegam a ser de uma hora. Isso pode prejudicar a coluna?
Dr. Maciel: O “core”, na verdade, entra nessa força abdominal e de tronco com o objetivo de sustentar o tronco. Mas, você não tem como sustentar alguma coisa que não esteja equilibrada. Quando você afeta e prejudica os discos intervertebrais, você acaba com a base de sustentação da coluna. Imagina uma casa que está com a base cedendo: você pode fazer o que quiser, mas ela vai ceder, vai continuar cedendo. A base da proteção da coluna não é na coluna, mas sim da pelve para baixo, e essa é a confusão. O aluno fica fazendo mil movimentos para a coluna, para ganhar força e músculos abdominais como se fossem o bíceps, um cotovelo ou um quadril, mas a coluna não é um cotovelo, nem um quadril. Essa articulação não funciona como uma dobradiça. A coluna tem uma característica completamente diferente; a articulação tem características completamente diferentes. A gente trata a coluna como se fosse um cotovelo ou um joelho – dobra estica, dobra estica – como se a característica articular fosse igual. E, quando falamos em estabilidade e em proteção de uma cartilagem e de uma estrutura articular que não respondem aos movimentos, pelo contrário, que na realidade resistem a esses movimentos, isso não faz sentido algum.
Nuno: Entendo que isso seja incompreensível para você. Quais os riscos articulares existentes no modelo de treinamento ligado ao fitness?
Dr. Maciel: Sabemos que, quando temos massa magra suficiente no corpo, temos capacidade de movimentação, sustentabilidade, locomoção e proteção, pois temos músculos, e os músculos fazem com que você mantenha osso na direção de osso. Você conduz as alavancas com um nível mínimo de equilíbrio e condição. Por isso, a massa magra é fundamental. O treinamento que segue essa linha está ok. Mas o que se tem de considerar e somar a essa questão é que, quando o aluno está fazendo as contrações, colocando força e exercícios em cima de uma articulação, deveria ser questionado: que características essa articulação possui e quais são? Quando o professor identificar isso, conseguirá imediatamente saber que certos tipos de exercício e movimento o aluno não pode fazer. “Essa característica que eu quero impor aqui, de movimento, não cabe. Essa articulação não irá responder bem a isso.” O músculo responde a qualquer estímulo contrátil; o músculo sabe identificar o que é bom ou ruim. Porém, ele faz o esforço e depois se recupera, ao contrário de uma articulação, que vai se machucar e se desgastar progressivamente.
Nuno: Gostaria que você falasse mais desse assunto. Cria-se uma enorme variedade de exercícios e, aparentemente, qualquer variação é positiva. Faz sentido existir uma diversidade tão grande de exercícios, se apenas alguns são ergonômicos e positivos?
Dr. Maciel: Eu acho que essa obrigatoriedade que o educador físico acha que tem, de a cada semana ter um novo repertório de exercícios, focando nesses repertórios e não no estilo de base e nas ciências básicas para entender melhor o movimento humano, é o que nos faz seguir no caminho que estamos indo. Um caminho sem consciência do que está sendo feito. Repertório não tem referência, é livre e qualquer pessoa pode criar. Cada vez mais, percebemos que os exercícios da moda estão bem longe da ciência. Quando você vai estudar as questões ligadas a degenerações e lesões, começa a perceber que tem que ser muito, muito cuidadoso para escolher o repertório, ser criterioso e até mais quadrado, para poder fazer a adequação a um trabalho corporal que o indivíduo possa realizar pela vida toda e que não o exponha a riscos. Uma coisa importante do treinador, na minha opinião, é que seja ele a pessoa quem dará esse ponto de equilíbrio para o indivíduo que o procura para treinar, e não a pessoa que estimula o indivíduo a fazer ainda mais loucuras. Muito pelo contrário, o aluno quer fazer as loucuras porque o estímulo está aí fora, à vontade, na internet, nas revistas. O treinador tem que trazer o aluno para o chão, para a realidade, dizendo: “Eu vou lhe explicar como funciona essa articulação, com esse movimento, com essa carga, com esse ângulo, e o que vai acontecer com a sua articulação em decorrência de tal exercício.” Quanto mais o treinador puxar a relação com seu aluno para a condição de informação, mais conhecimento de base esse aluno vai ter, e aí o senso crítico dele também vai melhorar. Ele, então, vai ter consciência corporal, vai experimentar no seu corpo tudo que está aprendendo e vai saber distinguir e entender o que lhe faz bem.
Veja a seguir um recorte que fiz de alguns trechos da entrevista feita com a tenista Bia Maia antes dos Jogos Pan-Americanos de 2015 e publicada no portal de notícias UOL. Este é um bom exemplo do que o impacto do esporte pode fazer com a coluna, e do quanto ela é essencial para a força e a movimentação dos membros inferiores.
“Aos 19 anos de idade, Beatriz Haddad Maia – ou simplesmente Bia Maia – chama a atenção pelos seus cabelos loiros, sua altura de 1,84 m e o belo sorriso sempre estampado no rosto. No Pan de Toronto (CAN), o primeiro de sua carreira, desponta como principal esperança de medalha do Brasil no tênis feminino.
‘Sou alta e pego forte na bola. A superfície aqui é rápida e boa para meu estilo de jogo. Acredito sim que dá para pegar uma medalha’, afirmou a jovem, que ocupa, atualmente, a 149ª posição do ranking da WTA.
A perseverança em seus objetivos e a fé de que tudo é possível foram lições aprendidas por Bia durante um dos momentos mais delicados de sua vida. Há dois anos, mais precisamente em 11 de outubro de 2013 – data que não sai de sua memória – a tenista sentiu um medo que jamais havia sentido antes. Temeu ficar para sempre em uma cadeira de rodas. Durante a disputa de um torneio na Geórgia (EUA), acordou de madrugada e não sentia a perna direita. O desespero bateu.
‘Acordei às 4 da manhã e não sentia a perna, batia nela e nada. Liguei a água gelada e não adiantou. Neste momento, me deu medo, fiquei muito desesperada. Eu teria um jogo de duplas na manhã seguinte. Entreguei e imediatamente resolvi voltar para São Paulo. Passei as oito horas de viagem de volta de pé no avião chorando. Não sentia a perna. Mas não conseguia andar e nem ficar sentada, pois quando sentava pressionava o nervo ciático e doía demais’, contou.
‘Na mesma noite que cheguei, fui para o hospital fazer a cirurgia da coluna. Estava com hérnia de disco que estava pressionando o nervo e tirando a sensibilidade (…)’, relembrou a tenista.
O problema na coluna – surgido em decorrência de uma fratura no ombro que a deixou três meses inativa – nunca mais voltou a acometer Bia. Mas até hoje não recuperou totalmente a sensibilidade da perna, nem a força.
‘Eu já me adaptei a jogar mesmo sem ter 100% da força na perna, estou acostumada. Mas sei que ainda é preciso melhorar’, afirmou Bia (…).”
(Fonte: “Problema na coluna faz tenista que estreia em Pan perder força”. Portal UOL, 11 de julho de 2015.)