O que é a cultura do narcisismo?
A seguir, utilizei o mesmo recurso do texto da chave 15, compilado de diferentes capítulos do livro “Nu e Vestido – Dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca”, organizado por Mirian Goldenberg. Aqui também, minha escolha foi fazer um recorte resumido das informações relevantes a essa chave.
É comum a ideia de que a preocupação com a aparência e a juventude, que chega a ser uma obsessão nos dias de hoje, esteja cada vez mais disseminada em todas as classes, profissões e faixas etárias. A mídia adquiriu um imenso poder de influência sobre os indivíduos, generalizou a paixão pela moda, expandiu o consumo de produtos de beleza e tornou a aparência uma dimensão essencial da identidade para um maior número de mulheres e homens.
Podemos pensar a cultura do corpo como uma “cultura do narcisismo”, em que os indivíduos estão obcecados por ilusões de perfeição física, esmagados pela proliferação de imagens, por ideologias terapêuticas e pelo consumismo. O corpo e a moda são elementos fundamentais no estilo de vida, e a preocupação com a aparência é carregada de investimento pessoal.
O corpo “em forma” se apresenta como um sucesso pessoal, ao qual qualquer mulher ou homem pode aspirar, se realmente se dedicar a isso. “Não existem indivíduos gordos e feios, apenas indivíduos preguiçosos”, poderia ser o slogan do mercado do corpo. É interessante destacar o paradoxo que o culto ao corpo gera nessa cultura. Quanto mais se impõe o ideal de autonomia individual, mais aumenta a exigência de conformidade aos modelos sociais estabelecidos. Se é bem verdade que o corpo se emancipou de muitas de suas antigas prisões sexuais, procriadoras ou indumentárias, atualmente encontra-se submetido a coerções estéticas mais imperativas e geradoras de ansiedade do que antigamente. A obsessão com a magreza, a multiplicação dos regimes e das atividades de modelagem do corpo, a disseminação da lipoaspiração, dos implantes de próteses de silicone nos seios, do Botox. Para atenuar as marcas de expressão na face e da modelagem de nariz, testemunham o poder controlador e normalizador dos modelos, um desejo maior de conformidade estética que se choca com a individualidade e a exigência de singularização dos sujeitos.
Num contexto em que a beleza e a forma física não são mais percebidas e valorizadas como “obra da Natureza Divina” e passam a ser concebidas como resultado de um trabalho sobre si mesmo, faz-se pesar sobre os indivíduos a absoluta responsabilidade por sua aparência física.
Nesse processo de responsabilização do indivíduo pelo seu corpo, a partir do princípio de autoconstrução, a mídia e, especialmente, a publicidade têm um papel fundamental. O corpo virou “o mais belo objeto de consumo” e a publicidade, que antes só chamava a atenção para um produto exaltando suas vantagens, hoje em dia serve, principalmente, para produzir o consumo como estilo de vida, procriando um produto próprio: o consumidor, perpetuamente intranquilo e insatisfeito com a sua aparência (Lasch, 1983). Com isso, saem ganhando, entre outros, os mercados das dietas, das cirurgias estéticas, dos suplementos e da “malhação”.
O corpo “virtual” apresentado pela mídia é um corpo de mentira, medido, calculado e artificialmente preparado antes de ser traduzido em imagens e de se tornar uma poderosa mensagem de “corpolatria”. As imagens e normas se destinam a todos aqueles que as veem e, por meio de um diálogo incessante entre o que veem e o que são, os indivíduos insatisfeitos com sua aparência são cordialmente convidados a considerar seu corpo defeituoso. Mesmo gozando de perfeita saúde, seu corpo não é perfeito e “deve ser corrigido” por numerosos rituais de autotransformação, sempre seguindo os conselhos das normas veiculadas pela mídia.
(Fonte: “Nu e Vestido – Dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca”, organizado por Mirian Goldenberg. Editora Record, 2002.)