A triste história do primata bípede que não sabe andar
Hoje vou contar para vocês uma história melancólica, moderna e atual. A história de uma espécie de primata que evoluiu* para a incapacidade física. Uma espécie que é tão boa no que faz, que pode se dar ao luxo de não fazer. Que progrediu eras na área intelectual, mas usa a tecnologia que criou para se sabotar.
*Evoluir, nesse contexto, não faz referência a evolução biológica, proposta por Darwin, e sim a progredir, elevar. Trocadilho intencional.
Sim, caros amigos, falamos sobre nossa espécie. Forjada pela natureza para ser um dos organismos mais eficientes. Em termos de capacidades físicas, somos uma espécie generalista, ou seja, somos capazes de realizar uma gama enorme de movimentos com bastante competência. Podemos saltar, escalar, cavar, lutar, andar, correr, arremessar. Todos com grande maestria. Prova disso acontece de quatro em quatro anos, as olimpíadas. Já imaginou uma olimpíada de guepardos? Seria como, duzentas competições de corrida de velocidade e só? Piadas à parte, não podemos negar a formidável capacidade de movimentação que temos em potencial. Note como uma criança se movimenta. Nunca vi uma criança pequena se deslocar entre dois cômodos de forma preguiçosa e arrastada. Geralmente vão correndo. O brinquedo cai no chão, logo ela abaixa de cócoras para pegá-lo. Já viram uma criança brincando em um playground? Parecem macaquinhos! Até que, em algum momento, um “responsável” grita: Menin@, não faça isso, vai cair e se machucar. Não corra, é feio. Não se suje! Árvores então… São assassinas em potencial!
E assim vão crescendo, dentro de casa, poucos metros quadrados, muitos afazeres intelectuais. Brincar lá fora não pode, pois é perigoso e pode pegar friagem. Já viu quantas bactérias tem no parquinho do prédio? Um horror! A escola é bem mais estéril. Põe a criança sentada por horas, e se levantar toma bronca: Tem formiga no bumbum garot@? Mais velhos um pouquinho e já acumulam tarefas. Inglês, francês e chinês, porque vai saber, né? Piano, guitarra e bateria. A bateria acabando, já nessa idade. Mas temos que prepará-los para o futuro. Dentro do escritório e do automóvel. De luxo, preferencialmente, porque o estofado é mais macio e confortável, e assim não precisará pisar numa embreagem. Aos 25 já está pós-graduado, empregado e levemente fora de peso (aliás, nunca esteve dentro do peso, mas sempre tomou leite com achocolatado. De marca). Aos 30, já não consegue dormir direito. Muito estressado, apela para um medicamento. Esse medicamento gera um efeito adverso, e para resolvê-lo, toma outro medicamento. Com 40 primaveras, já gasta uma pequena fortuna na farmácia. A “Neusa” é colega inseparável. O galã da televisão disse que um poli vitamínico é aconselhável. Afinal, quem tem tempo para almoçar nessa rotina maluca? Já batendo a marca de meio século de vida, seu filho já é homem grande. Quase não o viu crescer, pois estava ocupado em proporcionar uma vida de confortos a ele. Teve de tudo. Televisores de led, tablets, gadgets e internet de ultra velocidade. Só não teve espaço para correr, nem um incentivador para isso. E dessa forma o círculo girou.
Essa representação figurativa de vida da classe média brasileira pode ser estendida, com um ajuste aqui e outro acolá, para quase qualquer indivíduo que vive em cidade, no mundo. Nossa sociedade está hipervalorizando o intelecto e desvalorizando a capacidade de movimento. Não estou aqui desvalorizando a importância de todas as disciplinas intelectuais. Quero sim valorizar mais a inteligência do movimento (cinestésica). Uma enormidade de pesquisas cientificas apontam a necessidade de movimento para a manutenção da saúde. E não só a saúde ortopédica. Função cardíaca, pulmonar, digestória. Felicidade, hormônios, sono. Tudo melhora. Mas você já sabia disso, não é? Vovó já dizia. Possivelmente a vó da vó tinha esse conhecimento também. Então por que não colocamos em prática? E mais importante, por que não servimos de exemplo para os nossos filhos?
O seu potencial de movimento está aí, dormente. Dentro de cada célula do seu corpo. Esperando que você dê a partida. A partir daí ele reclama seu posto natural. Aquele que você, quando criança, nunca deveria ter perdido. Correr é natural e não é penoso. Levantar do chão não deveria gerar desconforto. Sustentar o peso do seu corpo não deve ser uma tarefa árdua. Seja de pé ou pendurado pelas mãos. Tudo aquilo que você fazia naturalmente quando criança, e que por algum motivo não faz mais. Por que você parou de se movimentar naturalmente? Vamos retornar?
Texto escrito por meu amigo e colaborador, o fisioterapeuta e bioantropólogo Marcelo Sanches.